Quantas vezes você já esteve dentro de um consultório médico com a felicidade estampada no rosto por estar cuidando da sua saúde e realizando o tão amado “check-up” anual? A satisfação de sair da sala e já entrar em contato com a recepcionista para agendar todos os exames passados em várias guias: sangue, urina, fezes, ultrassonografia, eletrocardiograma, se você for mulher as indispensáveis ultrassonografias de mama e tireoide, o Papanicolau e a mamografia e, se você for homem, o PSA. Faz todos os exames, volta no retorno, descobre as alterações que você não sente nenhum sintoma (mas que bom que foi feito o exame para descobrir as ameaças secretas à sua saúde), as vezes sai com prescrição de vitaminas, remédio para o colesterol, o discurso básico “diminuir gordura, fazer atividade física” e claro: mais exames complementares! Afinal, como o médico vai descobrir ainda mais doenças ocultas e como ele vai garantir o vínculo com você se não for assim.
A confusão entre prevenção de agravos e promoção de saúde é comum até entre profissionais e favorece a indústria em saúde, que prega uma medicina comercial, que favorece toda o complexo industrial da saúde quando nos submete constantemente a campanhas publicitárias incentivando a realização de exames de rotina sem qualquer análise individual, a adesão à meses coloridos (outubro rosa, novembro azul, etc.) baseado em ganhar a guia do exame, a valorização de práticas profissionais centradas no médico e na doença e um modelo hospitalocêntrico de atenção, com doenças sendo tratadas por especialistas focais.
Mas afinal, o que é promoção de saúde? Com certeza não é fazer exames de rotina! Mas o conjunto de práticas, adotadas individualmente ou coletivamente (por profissionais de saúde, gestores, atores sociais importantes e coletivos) com o único objetivo de melhoria da qualidade de vida. Como exemplo clássico podemos citar a prática regular de atividade física, a busca por uma rotina menos estressante, dedicação a momentos de lazer, busca por uma alimentação mais saudável e observação do seu corpo para a identificação de manifestações de doenças (perceba que aqui eu trago você como o responsável pela observação de si próprio, e não a terceirização dessa tarefa ao profissional de saúde). De forma menos óbvia, podemos citar também como promoção de saúde o estímulo à produção de alimentos sustentável, baseado em agroecologia e agricultura familiar, diminuição das desigualdades sociais através de políticas de distribuição de oportunidades e renda, melhoria da qualidade educacional da população (com valorização de práticas populares, empoderamento em saúde e acesso ao sistema de educação formal) e políticas de urbanização (transporte, moradia e cultura).
Portanto, o entendimento de que fazer exames não vai te trazer saúde, mas sim políticas de inclusão social, exige um pensamento coletivo de longe alcance à população brasileira, tão habituada aos modelos tradicionais de saúde e que carrega o fardo de uma história de fracassos em políticas públicas e retrocessos sociais. À exceção, o SUS, o maior sistema público universal de saúde do mundo e que tem a difícil tarefa de promover saúde para mais de 200 milhões de pessoas em uma arena política adversa. Por isso ele é organizado de forma que a Atenção Básica (o postinho perto da sua casa) é o local que você deve ser vinculado e atendido, pois é lá que a equipe conhece o local onde você mora, seus vizinhos e a maioria de seus familiares, sabe quantas horas por dia você gasta em transporte público, a qualidade da água e esgoto do seu bairro e quais são os principais fatores que te fazem adoecer.
E a prevenção, não é importante? Ela é essencial, se realizada baseada em evidências científicas e com análise individual das pessoas. Alguns exames comprovadamente são eficazes para descobrir doenças em estágios muito iniciais e podem representar a diferença entre viver ou morrer, por exemplo, a medida da pressão arterial, peso e altura no consultório e o Papanicolau (para mulheres acima de 25 anos e em uma periodicidade específica para cada mulher). Outras ações de prevenção de doenças importantíssimas são as vacinas, as consultas de pré-natal e a avaliação individual de riscos (como por exemplo: violência doméstica, comportamento de riscos para infecções sexualmente transmissíveis e cânceres de caráter hereditário). Portanto, a prevenção não é inferior à promoção de saúde, mas não pode ser confundida.
Algumas armadilhas podem se apresentar no caminho de promover saúde e prevenir doenças, como a prática recentemente denominada “disease mongering” em que indivíduos saudáveis são considerados doentes (por exemplo: protocolos internacionais que diminuem o valor “normal” da pressão arterial sem evidências científicas claras, considerando mais pessoas saudáveis como doentes) e recomendações de medicamentos para situações da vida que não necessitariam ser medicadas. Outros conceitos estão ganhando força entre as comunidades científicas mais preocupadas com os rumos da prevenção em saúde mercantilizada, como o de “iatrogenia” que se refere ao dano que uma intervenção médica pode te causar, pois todos os exames apresentam riscos próprios ao procedimento e riscos mais difíceis de serem mensurados (como a preocupação excessiva com um resultado que parece anormal, mas que não representa nenhuma doença). Aprofundando ainda mais, temos o conceito de “cascata iatrogênica” em que uma intervenção é remediada com outra intervenção que também causa dano, por exemplo: uso de remédios para tratar efeitos colaterais de mais remédios.
Por essas razões o princípio da bioética “Primum non nocere” (primeiramente, não causar dano) deve ser fundamental em todas as consultas médicas e a prescrição de exames além do necessário deve ser combatida por toda a sociedade. Então, quando os seus exames do check-up do ano passado “vencerem” e você se sentir na necessidade de realizar novos, pense primeiro em como vai a sua vida, sua alimentação, rotina de atividade física, ambiente doméstico, transporte, felicidade, relacionamento … para então, se necessário, procurar um atendimento. E, se de lá você sair com um calhamaço de exames para fazer, considere uma segunda opinião, esse profissional pode não ser o mais recomendado para te ajudar a promover saúde, mas com certeza ele está ajudando a inflacionar o PIB da saúde.












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